Pesquisas
já realizadas em instituições de ensino superior mostram que insegurança
alimentar entre os estudantes é preocupante, passando de 80% dos entrevistados
em alguns levantamentos.
Situações como a narrada por Franciele, de insegurança alimentar entre universitários, têm ganhado a atenção de pesquisadores no Brasil e no exterior.
Não há dados nacionais ou de diferentes anos que possam demonstrar um aumento recente na insegurança alimentar destes estudantes no Brasil, mas pesquisadores da área sugerem que a piora em indicadores econômicos, cortes orçamentários para as universidades e a pandemia podem ter agravado o problema. Este período trouxe como consequência, por exemplo, o fechamento de restaurantes universitários (RU).
Por isso, diversas instituições anunciaram estar coletando informações e realizando pesquisas com estudantes sobre a questão alimentar deles durante a pandemia, como na Universidade de São Paulo (USP) e nas universidade federais de Uberlândia (UFU), do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), do Acre (UFAC), Rio Grande do Norte (UFRN), Mato Grosso (UFMT) e Paraná (UFPR).
Algumas resultados já foram publicados. Um artigo científico de março mostrou que 84,5% de 84 estudantes morando no Conjunto
Residencial da USP
(CRUSP) entrevistados online tinham algum nível de insegurança alimentar —
definida por ao menos uma resposta afirmativa a perguntas como "nos
últimos 3 meses, a comida acabou antes que você tivesse dinheiro para comprar
mais?", "ficou sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e
variada?" ou "sentiu fome, mas não comeu porque não podia comprar
comida suficiente?".
Já na dissertação de
mestrado da nutricionista Natália Caldas Martins na Universidade de Fortaleza
(Unifor), verificou-se que 84,3% de 428 universitários da rede pública da Bahia
e do Ceará apresentaram algum grau de insegurança alimentar na pandemia — 35,7%
leve, 23,6% moderado e 25% grave.
Estes universitários
fazem parte de uma grande parcela da população brasileira em insegurança
alimentar: eram 116,8 milhões de pessoas nessa situação no país em 2020,
segundo estimou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da
Pandemia da Covid-19. De acordo com a pesquisa, a parcela da população afetada
cresceu significativamente nos últimos dois anos.
Café em falta e remédio
para dormir e não sentir fome
Quando conversou com a
BBC News Brasil, Franciele Rodrigues, que mora com o namorado, hoje
desempregado, contou que a única proteína que eles tinha em casa naquela semana
era ovo — e, mesmo assim, esse estava sendo racionado.
"Ontem, a gente
comeu ovo meio-dia e de noite, só um arrozinho com feijão para ter (ovo) no
almoço hoje", disse.
Na sua universidade, a
UFCSPA, não há um restaurante universitário — a existência deles não é
obrigatória por lei. Mas Franciele conta com bolsa alimentação de R$ 300
mensais, além de R$ 400 de auxílio-moradia.
Sem conseguir um
emprego por conta da rotina de aulas e estudos e com aluguel e outras despesas
a pagar, esse valor é insuficiente para se manter, ela diz.
"No primeiro mês
de faculdade, fiquei sem dinheiro porque a bolsa demorou a sair. Teve dias que
eu não comi. Ou ia pra aula, ou comia."
Com a pandemia, o
namorado, que trabalhava em um restaurante, perdeu o emprego. Sem as aulas
presenciais, ela deixou de conseguir vender lanchinhos e sucos que vendia na
faculdade, perdendo mais um bocado de renda. Em 2020, a universidade organizou
a entrega de cestas básicas mensais para alunos com vulnerabilidades como ela,
mas Franciele diz que neste ano deixou de receber a doação.
Hoje, até o café está
faltando em casa, e as frutas são raridade. Por outro lado, ovos, salsichas e
hambúrgueres congelados passaram a protagonizar as refeições.
"Pulamos o café da
manhã. Costumamos almoçar e jantar", conta Franciele, dizendo já ter
perdido uma disciplina quando as aulas eram presenciais, por não ter o que
comer. "Hoje, vejo que a situação está horrível mesmo para quem não pega
assistência estudantil."
Para
a estudante de turismo da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Juliana
Castro, 21 anos, uma solução para conter a fome devido a refeições puladas tem
sido dormir — às vezes através de remédios para isso. Durante sua trajetória
universitária iniciada no segundo semestre de 2018, ela recebeu bolsas por
alguns meses, não conseguiu empregos para complementar a renda e hoje conta
estar endividada. Como essa situação financeira afeta diretamente sua
alimentação, ela conta ter perdido quase 20kg nos últimos dois meses.
"Posso te dizer
que o semestre passado eu passei acho que porque Deus quis. Eu não consegui ler
texto, escrever então era fora de série", conta Juliana, que nasceu na
pequena cidade de Palma (MG) e mora hoje em um alojamento da UFJF. "Não
consigo me concentrar para fazer as coisas, fico com indisposição, cansaço. Já
desmaiei por ficar sem comer. Fico com a barriga e a cabeça doendo de
fome."
"Nos dias que eu não
como nada, literalmente nada, eu só durmo. Às vezes eu tomo remédio para
dormir, porque dormindo eu não sinto fome."
Desde
o início da faculdade, a estudante teve a ajuda de amigos, que dividem com ela
compras ou emprestam o dinheiro ou o cartão; e recebeu por algum tempo algumas
bolsas, sempre com valores abaixo de um salário mínimo.
Juliana
conta que durante dois anos recebeu uma bolsa vinculada ao Plano Nacional de
Assistência Estudantil (PNAES), mas a vigência do benefício acabou. Ela também
recebeu por alguns meses uma bolsa bancada por emendas parlamentares destinadas
à Diretoria de Imagem Institucional da UFJF, precisando em contrapartida
trabalhar em projetos de extensão. Entretanto, os pagamentos desta são
irregulares.
Em
nota, a UFJF afirmou que "dada a origem dos recursos — emenda parlamentar
— o pagamento da bolsa dependia do envio de recursos financeiros pelo
Congresso, o que não ocorreu de forma linear e seguindo prazos
pré-estabelecidos".
A
universidade afirmou que as bolsas pagas a alunos de graduação tinham até junho
o valor de R$ 400, mas esses valores precisaram ser reduzidos para R$ 300
"em virtude das restrições orçamentárias às quais as universidades
brasileiras foram submetidas".
Já
a UFCSPA, onde estuda Franciele Rodrigues, afirmou em nota enviada à reportagem
que está construindo um restaurante universitário, com previsão para abertura
em 2022: "(…) cabe informar que a UFCSPA se tornou universidade federal em
2008, e desde então esta demanda (por um restaurante) tem sido apresentada pela
comunidade universitária, demanda que está sendo encaminhada pela atual gestão."
"Salientamos
a importância do PNAES que, mesmo com elevados cortes orçamentários, em
conjunto com demais políticas públicas, tem sido um instrumento que colabora na
segurança alimentar e na permanência estudantil no ensino superior",
acrescentou a UFCSPA.
O impacto
dos cortes para as universidades
O Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi criado
em 2010 e repassa verbas a instituições federais de ensino superior para que
estas forneçam, conforme suas políticas internas, assistência aos universitários
na moradia, alimentação, transporte, inclusão digital, entre outros.
Entretanto, a
presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bruna Brelaz, diz que estas
ações estão prejudicadas no contexto de "corte de mais de R$ 1
bilhão" no orçamento das universidades federais, citando dado da
Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior
(Andifes) sobre a diminuição de verbas entre 2020 e 2021.
A
Andifes diz que os recursos para o PNAES já têm sido insuficientes nos últimos
anos, e que idealmente deveriam chegar a R$ 1,5 bilhão. Entretanto, segundo
levantamento da entidade, em 2021 houve a maior redução no orçamento para o
programa nos últimos cinco anos: o valor executado diminuiu 15,78%, caindo de
R$ 1 bilhão em 2020 para R$ 874 milhões em 2021.
Esses
valores são nominais — ou seja, não consideram a variação da inflação.
Portanto, a diminuição do orçamento é na realidade maior do que 15,78%.
Na
outra ponta, isso se reflete na evasão dos estudantes, segundo a presidente da
UNE.
"Uma
vez que a crise econômica é muito maior agora, e mais estudantes e suas
famílias perderam rendas, a verba destinada a esses programas e bolsas não
acompanhou a necessidade. Ainda não temos dados sobre a evasão universitária no
pós-pandemia, mas com certeza, eles devem se elevar", escreveu Brelaz à
BBC News Brasil.
O
Ministério da Educação não atendeu ao pedido de posicionamento da reportagem.
Estudante
de Direito, Erisvan Bispo, 43 anos, sabe bem o que é o descompasso entre o
valor das bolsas e as necessidades. Indígena, ele recebe a Bolsa Permanência no
valor de R$ 900 e, no passado, recebia também auxílio moradia e alimentação.
A
Bolsa Permanência foi criada em 2013 pelo governo federal. Trata-se de um
auxílio financeiro destinado sobretudo a universitários indígenas e quilombolas
em instituições federais.
Em
2019, Erisvan precisou optar por alguma das bolsas, pois uma regra da sua
universidade, a Federal da Paraíba (UFPB), passou a vedar o acúmulo de auxílios
estudantis com a Bolsa Permanência. Perto da sua casa em Mamanguape (PB) e no
seu campus, não há restaurante universitário.
"Acompanhando
o aumento do preço das coisas, você fica perplexo. Quando você pensa o quanto
de dinheiro entra e o quanto tem que gastar, enlouquece", disse Erisvan à
reportagem por telefone. "Direito é um curso que eu preciso me dedicar
muito. Não é impossível estudar e trabalhar, mas para ficar com um coeficiente
de rendimento alto, é difícil."
"Sem
trabalho, eu dependo das políticas sociais."
O
"preço das coisas", como disse o universitário, realmente tem subido
consideravelmente na alimentação, segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). No acumulado dos últimos 12 meses, a inflação
nos alimentos e bebidas, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Amplo (IPCA), ficou em 11,7%, conforme registrado em outubro. Entre os 10
alimentos que mais tiveram aumento estão o pimentão (85,37%), açúcar refinado
(47,8%), mandioca (40,7%), filé mignon (38%) e tomate (31,99).
Em
nota, o professor Alfredo Rangel, pró-reitor de Assistência e Promoção ao
Estudante da UFPB, afirmou que a universidade conta hoje com quatro
restaurantes universitários e pretende abrir mais uma unidade em Mamanguape no
ano que vem.
Ele
acrescentou que, embora a UFPB tenha recebido um orçamento menor para
assistência estudantil, a universidade conseguiu manter o valor e o número de
bolsas normalmente ofertadas.
Também com orçamento
apertado, no seu caso para bancar aluguel, moradia, internet, transporte e
comida, Erisvan diz ter cortado da alimentação itens que chama de
"supérfluos", como iogurte, queijo, biscoito recheado, goma para
tapioca e frutas.
"A
única carne que consigo comer é hambúrguer, calabresa e salsicha, porque é
barato", afirma Erisvan, acrescentando ter perdido peso por conta da
combinação falta de renda e estresse por todo este cenário.
Em
um futuro próximo, ele diz depositar esperança em oportunidades de estágio
remunerado e, a longo prazo, nos frutos que sua carreira pode trazer.
"Às
vezes, por conta dos cortes (na educação superior), sinto revolta. Mas também
sou muito grato por estar na universidade. Eu não acordo reclamando,
lamentando… Eu sei que estou passando dificuldades para ter uma melhoria de
vida. Acredito que algo de bom vai acontecer depois que eu me formar, depois da
carteirinha da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil)."
Vulnerabilidade
da 'primeira geração'
Erisvan
diz ter uma origem "paupérrima" e é o primeiro da família a ir para a
universidade. Nascido em uma aldeia na serra do Ororubá, em Pernambuco, ele e a
família migraram para São Paulo (SP) fugindo de conflitos por terra. Ele morou
cerca de 30 anos na capital paulista e depois resolveu voltar a morar e estudar
no Nordeste.
Assim
como ele, Franciele Rodrigues e Juliana Castro também são da primeira geração
de suas famílias a ir para a universidade.
Apesar
de vir dos Estados Unidos, um dos maiores estudos já feitos sobre a insegurança
alimentar nas universidades mostrou que estudantes de "primeira
geração" — ou seja, cujos pais não tinham ensino superior —, aqueles com
níveis socioeconômicos mais baixos, além de imigrantes e pessoas trans eram
mais vulneráveis ao problema.
A
pesquisa publicada em 2019, intitulada College and University Basic Needs
Insecurity e realizada pelo Hope Center, entrevistou 86 mil estudantes em 123
universidades. Deste total, 45% foram considerados como sofrendo de insegurança
alimentar nos 30 dias anteriores.
A nutricionista Tânia
Aparecida de Araújo é uma das autores da pesquisa sobre a insegurança alimentar
entre alunos vivendo no Conjunto Residencial da USP (Crusp) durante a pandemia.
Ela diz que neste e em outros estudos realizados no Brasil, a baixa renda foi
um dos fatores mais importantes para a insegurança alimentar dos
universitários.
Dos
alunos considerados em insegurança alimentar no Crusp, 92,6% tinham renda
considerada insuficiente.
Para
Araújo, é justamente a chegada de estudantes de baixa renda à universidade nas
últimas décadas, movimento que ela atribui a políticas de inclusão dos governos
petistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016),
que impulsionou a insegurança alimentar nas universidades como tema de pesquisa.
"A gente tem agora
mais pessoas de baixa renda entrando na universidade, o que é muito positivo,
porque são ciclos de pobreza que podem ser quebrados. Mas antes, os
universitários, principalmente de universidades públicas, eram de uma classe
média branca. Agora, a gente realmente tem que dar atenção às políticas
públicas para garantir, entre outras coisas, a segurança alimentar e
nutricional desses estudantes", diz a pesquisadora, doutora em saúde
pública pela USP.
A
nutricionista aponta que, além da origem socioeconômica, os universitários
ficam mais vulneráveis à insegurança alimentar à medida que deixam de ter redes
de apoio como a alimentação e moradia na casa da família. Tendo que se virar
sozinhos, muitos apelam às comidas ultraprocessadas como hambúrgueres e
macarrão instantâneo porque são rápidas, práticas e baratas.
Ela
também ressalta a importância dos restaurantes universitários mas diz que não
deve-se esperar que eles contemplem integralmente todas as refeições dos
alunos. Desejar comer em outros lugares além deles é legítimo — e em alguns
casos necessário, como no caso de Juliana Castro, que teve problemas de
intolerância a vários alimentos frequentes no cardápio do RU da sua
universidade, como leite e carne de porco.
"A
gente acha que a pessoa vulnerável tem que aceitar qualquer coisa, mas todo
mundo tem direito de fazer suas escolhas alimentares. Por mais que tenha o
restaurante universitário, é muito difícil você manter uma graduação fazendo
todas as refeições, almoço e janta em um restaurante", diz Tânia Aparecida
de Araújo, apontando para a importância das bolsas de auxílio, além dos RUs.
Para
ela, os estudos têm se voltado para as universidades públicas justamente porque
estas têm maior propensão a realizar pesquisas científicas — mas aponta que
investigar a situação dos estudantes de faculdades particulares é também
urgente, já que a presença de alunos de baixa renda nestas é grande, além do
forte comprometimento financeiro que as mensalidades e financiamentos
representam para eles.
Bruna
Brelaz, da UNE, também aponta para diferenças entre os tipos de instituição.
Enquanto as universidades federais contam o PNAES e a Bolsa Permanência, mesmo
que aplicados de forma insuficiente na sua avaliação, as estaduais têm
políticas e ações variando de acordo com a unidade federativa.
"Na
nossa opinião, é preciso leis, decretos também estaduais, para garantir a
manutenção desses direitos, além da regulamentação e constante fiscalização
para as devidas condições de disponibilização deles", diz a presidente da
UNE.
"Já
nas universidades privadas, temos como realidade a falta de regulamentação, que
dessa forma, não garante refeições com preço acessível, por exemplo",
acrescenta. "Se alguma universidade privada institui esses restaurantes
para estudantes ou vale alimentação é por iniciativa própria, mas sem haver uma
regulamentação ou levantamento oficial."
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